← Voltar

Relatos de alguém que viveu a vida de trás para frente

Descendente de imigrantes italianos e portugueses, Guiomar Trovato Monaco casou-se e teve filhos ainda adolescente, lidou com os problemas de saúde, voltou a estudar já adulta e formou-se em Direito. Antes de terminar a faculdade, ela passou no concurso público para Oficial de Justiça, cargo que exerceu durante um longo período. A fim de conhecer e lidar melhor com suas enfermidades, participou de um grupo de apoio que, posteriormente, deu origem a uma ONG, da qual foi cofundadora e onde permaneceu na diretoria por 15 anos.

Atualmente, com 73 anos, Guiomar está aposentada e dedica grande parte do tempo a sua família. Conseguiu realizar seus maiores sonhos, mas continua mantendo outros pois, segundo ela, são eles que dão o colorido à vida.


Juliana: Como foi para você parar de estudar e começar a trabalhar no início da adolescência?

Guiomar: Pouco antes de completar meus treze anos, meu pai perdeu o emprego e minha mãe não podia ajudá-lo, pois meus três irmãos pequenos necessitavam de cuidados. Deixei os estudos antes de terminar o ensino fundamental para enfrentar o trabalho e ajudar a família. Foi um processo doloroso, pois eu amava a escola. As dificuldades que vivenciávamos e o respeito a meus pais não me permitiam contestar suas decisões. Não tive escolha senão aceitar o que a vida me impunha.

Juliana: Você se casou e teve filhos muito jovem. Foi difícil ter tanta responsabilidade com pouca idade?

Guiomar: Amadureci cedo e, apaixonada, casei precocemente. Antes de completar vinte anos, nasceram meus dois filhos. Sendo mãe adolescente, senti bastante o peso dessa responsabilidade. Algumas vezes me sentia perdida, mas tive o apoio de minha mãe que, mesmo distante, não media esforços para me socorrer. Acredito, sendo espiritualista, que de um modo ou de outro temos uma missão a cumprir. O segredo está em encarar as dificuldades e transformá-las em vitórias.

Juliana: Como você lidou com tudo isso?

Guiomar: Foi um período de muitos conflitos emocionais. Os sonhos da adolescência se mesclavam com a realidade da vida adulta. A submissão ao marido autoritário, a rebeldia aflorando, as brincadeiras de criança com as crianças, o amor aos meus filhos, a responsabilidade de educá-los e momentos de felicidade intercalados com muitos questionamentos. Por viver essa parte da minha vida na década de 60, marcada pela revolução dos costumes, parecia que eu participava de um filme. Desse modo, houve instantes em que eu queria me libertar das “amarras” imaginárias para me engajar em movimentos feministas, voltar aos bancos escolares, participar dos festivais de músicas e dançar o Rock and Roll. No entanto, meu forte senso de responsabilidade e meu amor pela família superavam toda a ansiedade.

Juliana: Quando seus filhos eram adolescentes você voltou a estudar. Como foi esse processo de terminar o ensino secundário e começar a faculdade já adulta?

Guiomar: Sempre tive “sede de saber” e, por isso, acompanhava a vida escolar de meus filhos com grande interesse. Visto que a esperança de retornar aos estudos nunca me deixou, com muita determinação e paciência consegui fazer meu marido compreender meus anseios. Assim, com meus filhos já adolescentes, voltei aos estudos. Cursei o supletivo e, ao terminar, prestei vestibular junto com meu primogênito. Foi uma sensação indescritível saber que nós dois tínhamos entrado na faculdade. Senti-me duplamente vitoriosa e orgulhosa.

Juliana: Por que escolheu cursar Direito? Você se arrepende da escolha?

Guiomar: Prestei exames para Direito e História, em faculdades distintas. Conquistei as duas vagas, mas tive que escolher. Eu havia decidido que faria História, porém, incentivada por meu marido, resolvi cursar Direito. Não me arrependo, pois descobri um novo mundo. Mas, se pudesse, teria feito História paralelamente, pois o curso me fascinava.

Juliana: Como foi estudar na mesma sala de faculdade com um de seus filhos?

Guiomar: Eu e meu filho optamos pela mesma área, na mesma universidade, e caímos na mesma turma. Esse fato despertou muita curiosidade nos colegas, já que, na época, era raro encontrar uma pessoa madura em uma classe em que a maioria era adolescente. Desse modo, tornei-me a “mãezona” e conquistei o respeito de todos. Por ser aplicada nos estudos, muitos buscavam minha ajuda. Foi um tempo muito divertido, em que, ao lado de meu filho, pude resgatar alguns momentos perdidos na juventude.

Juliana: Ao terminar a faculdade, você passou no exame da OAB sem cursinho preparatório. Como você se sentiu?

Guiomar: Ao final do curso, um dos momentos mais tensos era o tão temido exame de ordem. Como eu não tinha tempo nem dinheiro para fazer o cursinho preparatório, intensifiquei meus estudos, encarei os exames na primeira oportunidade e passei. Deixei muitos colegas frustrados, pois a maioria não teve êxito, inclusive meu filho. Finalmente, conseguira realizar meu grande sonho: eu era uma advogada. Foi uma explosão de emoções.

Juliana: Além disso, você prestou concurso público para Oficial de Justiça e passou. Você assumiu o cargo ou queria advogar? Se arrepende da escolha?

Guiomar: Após o exame da OAB, decidi testar meus conhecimentos prestando concurso para Oficial de Justiça. Para minha surpresa, descobri que havia passado com ótima pontuação. Novamente, encontrava-me diante de um dilema, pois fora convocada para assumir o cargo quando estava prestes a me formar. Resolvi tentar a carreira pública, o que me obrigou a abrir mão do exercício da advocacia, em virtude do conflito entre ambos. Nunca me arrependi da escolha pois, na função de Oficial de Justiça, tive a oportunidade de conhecer melhor a natureza humana, aprender e praticar a verdadeira justiça. Foi nesse trabalho que descobri minha verdadeira vocação: dedicar-me ao próximo.

Juliana: Como você reagiu ao descobrir que tinha artrite psoriásica?

Guiomar: Ainda muito jovem, aos catorze anos, descobri que sofria de artrite psoriásica, doença de pele autoimune que me “premiou” com muito sofrimento físico e emocional. Enfrentei a dor do preconceito, por causa do aspecto da pele, além das intensas dores articulares, que limitavam minha locomoção. Foi o início de uma longa peregrinação em busca de tratamento para controlar uma patologia incurável, até o momento.

Juliana: Você procurou alguma forma específica de tratamento?

Guiomar: No início, a psoríase eclodiu apenas nos cotovelos e joelhos. Iniciei um tratamento que conseguiu conter sua evolução até a segunda gravidez. Após o nascimento de meu filho, a doença se alastrou por todo o corpo. Foi o começo da busca desesperada por tratamento correto. Estive nos Estados Unidos e em Cuba atrás da prometida cura, onde me submeti a diferentes terapias que ajudaram a controlar a doença por um longo período. Ironicamente, esse foi o caminho que me levou a realizar outros sonhos: o de conhecer novos países.

Juliana: Você se filiou a um grupo de apoio a pessoas com artrite. Por que?

Guiomar: Durante muito tempo, precisei usar medicamentos imunossupressores e corticóides para que eu pudesse me movimentar sem dores. Inconformada, passei a buscar mais informações e descobri um grupo de apoio a pessoas com patologias reumáticas. Na associação, encontrei acolhimento, compreensão e solidariedade. Adquiri muito conhecimento através de palestras médicas e cursos de autoajuda, resultando em uma extraordinária melhora na qualidade de vida. Percebendo a importância do trabalho desse grupo, filiei-me a ele e passei a colaborar voluntariamente, algumas horas por semana.

Juliana: Como foi a experiência de trabalhar tanto tempo voluntariamente?

Guiomar: O trabalho voluntário foi a experiência mais gratificante que pude vivenciar. O pequeno grupo cresceu tanto que nos impeliu a fundar uma entidade filantrópica de apoio a pessoas com doenças reumáticas. A partir daí, além do atendimento, iniciamos uma intensa jornada de divulgação, de luta em busca de medicamentos e tratamentos mais efetivos, junto aos órgãos públicos de saúde. Aos poucos, nossos projetos se concretizavam e a alegria se intensificava. Acredito que o trabalho voluntário contribuiu muito para estabilizar a minha artrite.

Juliana: Quais foram suas maiores conquistas dentro da ONG?

Guiomar: Graças à credibilidade e reconhecimento ao trabalho desenvolvido, conseguimos o apoio das Sociedades Paulista e Brasileira de Reumatologia. Promovemos palestras, seminários, cursos de capacitação para terapias ocupacionais e inclusão de pacientes reabilitados no mercado de trabalho. A convite das Sociedades Médicas, participamos de congressos dentro e fora do país e apoiamos a criação de inúmeros grupos Brasil afora. Fundamos a Associação Nacional de Grupos de Pacientes Reumáticos que nos levou à luta por políticas públicas, junto ao Congresso Nacional. Participamos de uma vitoriosa audiência pública, promovida pelo STJ, que nos permitiu introduzir novos medicamentos biológicos no SUS. Nessa longa caminhada, tivemos forte apoio de médicos, psicólogos, fisioterapeutas e estudantes da área de saúde. Foram quinze anos de trabalho humanitário que só foi possível graças ao conhecimento adquirido nos bancos da universidade.

Juliana: Depois de quinze anos você deixou a ONG. Por que?

Guiomar: Nos últimos anos, o trabalho na entidade era tão intenso que absorvia quase todo o meu tempo. Meu marido adoeceu gravemente e fui obrigada a me afastar da ONG para me tornar sua cuidadora. O afastamento, além de doloroso, foi imperativo porque a família sempre foi prioridade em minha vida.

Juliana: Como está sua vida atualmente?

Guiomar: Hoje, o convívio mais próximo com a família me traz a convicção de que sou uma pessoa realizada. Com mais tempo para refletir sobre minha trajetória, muitas vezes me surpreendo, tentando compreender como consegui realizar tantos projetos simultâneos, convivendo com uma doença tão desgastante.

Juliana: Qual a maior lição que você pôde tirar de toda sua trajetória?

Guiomar: Foi a descoberta do eu verdadeiro. Descobri-me um ser forte, determinado e corajoso que superou todos os obstáculos para alcançar os sonhos. Entendi que o amor pela família, pelas pessoas e pelo conhecimento foi o grande construtor de minha trajetória.

Juliana: Foi lhe permitido realizar seus maiores sonhos? Existe algum que ainda não conseguiu concretizar?

Guiomar: Com certeza eles foram realizados. Estudei, me graduei e trabalhei por minha livre escolha depois de casada. Mas foi no trabalho voluntário que encontrei o verdadeiro sentido da minha existência. Continuo mantendo sonhos, pois são eles que tornam a vida colorida. Ainda sonho em conhecer terras de meus antepassados portugueses e italianos. E sinto que vou realizar.